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Por Marcelo Magalhães e Renata Garofano

A Cracolândia mudou de lugar. O que permanece é a angústia de quem procura parentes escravos da dependência.

Eu nunca tinha visto tanta tragédia como naquele lugar. Ali é o fim do fim do ser humano. Ali é o pior lugar que o ser humano pode chegar

As palavras cheias de angústia saem da boca de quem perdeu o que considerava mais certo na vida. Aos 63 anos, a costureira Marilena Feitosa passou os últimos 15 ao lado do marido, Ezequiel Batista, de 50. O casamento no papel não saiu há muito tempo: pouco mais de quatro anos. Mais recente ainda foi o rompimento dessa história de amor. Há oito meses, Ezequiel deixou Marilena para se entregar ao crack.

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Reprodução/Record TV

"Ele sempre falava: 'amor, nós vamos acabar bem velhinhos juntos. Eu não me vejo sem você.' E, agora, um maldito vício tirou ele de mim. Eu ficaria mais feliz se fosse uma mulher. Porque eu saberia que me traiu por uma mulher. Mas um vício tão terrível como crack acabou com a minha vida."

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Reprodução/Record TV

Ezequiel usa drogas há pelo menos três anos. Como muitos parentes de dependentes químicos, a esposa só descobriu o vício ao notar que o dinheiro — tão difícil de ganhar — passou a, simplesmente, desaparecer.

"Começava a sumir dinheiro dentro de casa: R$ 10, R$ 20, R$ 50. Até que eu descobri. E eu chorava muito. Eu saí de casa por uns três dias. Porque eu não queria aceitar aquela vida".

Foram muitas tentativas de contornar a situação. O casal buscou tratamento e Marilena sempre permaneceu ao lado do marido. Até que, um dia, ao voltar do trabalho, percebeu que Ezequiel não estava mais em casa.

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Divulgação/Record TV

"Eu vi uma folha, um papel debaixo de um caderno em cima do sofá. Aí, eu puxei e estava lá um bilhete":

Amor, sei que essa não é a melhor forma. Mas é a que eu achei. Não dá mais. Já fiz muita coisa ruim com você. Tô indo embora

"Meu esposo desapareceu do nada. Sem briga, sem motivo algum. Eu tinha saído e deixado ele em casa. Ele ainda foi até o portão, me levou, me deu um beijo. Quando eu voltei, ele já não estava mais. Eu entrei em desespero".

De lá para cá, a cada noite, Marilena cai no choro. E se reergue, todas as manhãs, com um propósito, uma meta de vida: encontrar o marido. Nem que, para isso, tenha que frequentar os lugares maculados pela droga que o tirou de sua vida. Mesmo castigada por dores nas pernas causadas por uma artrite, a esposa enfrenta uma viagem de quatro horas de ônibus, trem e metrô até o centro de São Paulo. Tudo para buscar de pistas sobre o paradeiro de Ezequiel.

"Não dá pra entender, nem aceitar. Mas, se ele quer essa vida, tudo bem. Eu não vou brigar. Mas eu quero saber onde ele está".

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Arte R7

O caso de Ezequiel e Marilena é apenas um em meio à multidão que se aglomera no centro de São Paulo para usar o crack. Do fim de março para cá, a busca ficou ainda mais desafiadora depois da mudança em um cenário que estava praticamente inalterado há 30 anos.

Segundo a Polícia Civil, na noite de 18 de março de 2022, lideranças do crime organizado determinaram que traficantes e usuários deixassem o lugar que, ao longo dos anos, a cidade se acostumou a chamar de Cracolândia — o encontro da rua Helvetia, das alamedas Dino Bueno e Cleveland e da praça Júlio Prestes, na região da Luz. Reflexo, também de acordo com a Polícia, de 92 prisões feitas na área desde o início da Operação Caronte, das Polícias Civil e Militar e da Guarda Civil Metropolitana, em junho do ano passado.

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Reprodução/Record TV

Ao longo do fim de semana seguinte, viu-se uma migração de usuários de crack da antiga Cracolândia para outros pontos do centro. Um terço deles — cerca de 200 pessoas, na contagem da Polícia Civil — migrou para a praça Princesa Isabel, a apenas 500 metros de lá. A concentração de dependentes químicos também aumentou no túnel entre as Avenidas Paulista e Rebouças, na Praça Julio Mesquita, no bairro da Santa Ifigênia, nas ruas Apa e Doutor Frederico Steidel e na Praça Marechal Deodoro, em Campos Elísios.

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Arte R7

Às vezes, a pessoa fala: 'nossa, a minha vida é um inferno.' É porque não conhece a Cracolândia. Porque ali é o verdadeiro inferno

Sara Barros do Santos, 35 anos, se viu obrigada a frequentar muitas vezes os mais diversos pontos de uso do crack em São Paulo. O marido, Jeferson, é dependente da droga desde o início do namoro. Foram idas e vindas ao submundo da dependência ao longo dos anos. Hoje, depois de 12 anos de casamento, a situação ficou insustentável.

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Reprodução/Record TV

"Eu já fui várias vezes lá atrás dele. Me dá mal-estar, dor de cabeça, eu fico tremendo. É uma coisa negativa que tem ali que é inexplicável."

Ironicamente, desta vez, Sara achava que nunca mais teria que passar por isso de novo. Jeferson não usava o crack havia quatro meses. Os dois investiram suas economias em dois negócios: uma pastelaria para ela e uma gráfica para ele. O marido parecia mais dedicado à família, estava carinhoso como nunca.

De repente, deu a abstinência. Pronto, ele largou tudo e foi

"Ele saiu pra fazer um orçamento. Eu passei o dia inteiro tentando ligar e já estava desligado o celular. Até minha filha de oito anos falou: 'mãe, se ele desligou o celular, já era.'"

Sara decidiu esperar. Foram 30 dias de angústia e resistência, aguardando a volta do marido, arrependido. Mas Jeferson não apareceu. A esposa, então, voltou à busca que prometeu nunca mais repetir. Só que, desta vez, ela teve uma surpresa.

"Quando eu fui lá, ele tinha ido para uma clínica. Ele fez um vídeo falando que ele tava se tratando por mim, pela filha dele, por ele. Porque ele queria uma nova vida."

Cerca de 26 dias depois, Jeferson, finalmente, voltou para casa. Hoje, ele trabalha com o conserto de computadores. Enquanto o casal tenta, mais uma vez, reparar a vida da família. 

"Eu sempre falava que era tudo uma safadeza deles, que eles fazem porque querem. Mas, quando eu conheci a Cracolândia, eu vi que realmente eles são pessoas doentes. Porque não tem lógica uma pessoa largar o conforto da sua casa, o amor da sua filha, do seu filho, do seu pai, de um parente próximo pra ficar ali. É uma coisa absurda."

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Reprodução/Record TV
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Reprodução/Record TV

Se a situação de famílias como a de Sara enfrenta uma incerteza há muitos anos, a forma de tratar a questão dos usuários de crack no centro da capital paulista também se mostrou inconstante ao longo dos últimos mandatos na prefeitura. Na gestão de Fernando Haddad (PT, 2013-2016), o foco das ações municipais era a redução de danos, ou seja, controle do uso, sem interrompê-lo necessariamente, e inserção social.

Com João Doria (PSDB, 2017-2018), a atenção foi direcionada à medicação e à internação pela abstinência, que norteiam o modelo atual. A gestão Ricardo Nunes (MDB, 2021-2022) investe R$ 3,3 milhões por mês nos equipamentos e serviços do programa Redenção — descrito como "ações integradas de saúde, assistência social, trabalho e direitos humanos."

O psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, coordenador técnico do programa, afirma que o modelo será mantido, mesmo com o espalhamento dos usuários pela cidade. "Cada paciente é único. Precisamos nos adaptar ao desejo deles, redução de danos ou abstinência. É preciso ouvir o desejo do paciente", afirma.

Por outro lado, a falta de continuidade dos programas municipais, ora com foco na redução de danos, ora com foco na abstinência, contribui para a permanência dos problemas, de acordo com a análise de Maria Angélica Comis, coordenadora do centro de convivência É de Lei, que atua na região central desde 1998. "Falta uma política de Estado. Com isso, as ações mudam de um governo para o outro."

A Operação Caronte também vai continuar. "Nós vamos atuar em todos os locais onde os criminosos estão tentando se instalar", diz Alexis Vargas, secretário-executivo de Projetos Estratégicos da prefeitura.

Entidades criticam ainda a falta de diálogo do Comitê Gestor da Política Municipal sobre Álcool e outras Drogas com o Comuda (Conselho Municipal de Álcool e Outras Drogas), que, na prática, representa a sociedade civil. No último dia 7 de março, 52 entidades encaminharam um ofício à Câmara Municipal cobrando maior transparência. "O Comitê Gestor precisa ouvir a sociedade civil", afirma Michel de Castro Marques, especialista em saúde coletiva da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, que reúne mais de 50 organizações, que atua na região desde 2008.

A prefeitura rebate e afirma que as reuniões são abertas para a participação de todas as entidades, mas que está dando oportunidade de participação a outras organizações.

Coordenadora do Levantamento das Cenas de Uso das Capitais, realizado pela Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), a psicóloga Clarice Madruga afirma que a resolução dos problemas exige atenção a outras regiões da cidade, especialmente à periferia. Ela sugere a adoção de trabalhos de prevenção em dois âmbitos: ações que busquem evitar o agravamento de casos, proporcionando maior acesso a tratamentos efetivos e apoio aos familiares, e ações de prevenção para os estágios iniciais da adolescência.

De acordo com a especialista, o consumo precoce do álcool aumenta o risco de instalação de dependência química no futuro. Com isso, ações que postergam a experimentação, principalmente entre populações mais vulneráveis, podem interromper o ciclo que, muitas vezes, leva às cenas de uso. "Se não tivermos esse olhar para prevenção entre os mais vulneráveis, a Cracolândia sempre vai receber mais usuários. É uma torneira que continua aberta, especialmente agora, com uma enorme vulnerabilidade social trazida pela pandemia", alerta a pesquisadora da Unifesp.

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Arte R7

Durante dois meses, o programa Repórter Record Investigação acompanhou famílias que procuram por parentes em locais dominados pelo crime organizado  no centro de São Paulo. Histórias dramáticas, mas acima de tudo de amor e resiliência, sobre pais, filhos, avós e netos que saíram de casa por causa do crack. Você pode assistir à íntegra das duas partes do documentário "O Amor na Cracolândia" clicando nos links abaixo. 

Você também pode rever as edições do Repórter Record Investigação sobre a Cracolândia (SP): clique aqui e aqui e assista às íntegras das matérias no PlayPlus.com.

Bastidores

Ouvi diversas vezes o alerta: "Cracolândia não é Disneylândia". E realmente não é!! Trata-se do maior cenário de uso de drogas do país, e um dos maiores do mundo. Uma área dominada pelo crime organizado, onde jornalistas não são bem-vindos

Giselle Barbieri, repórter de investigação e pauta

Foram dois meses acompanhando diariamente a rotina da Cracolândia, no centro de São Paulo. A missão: Mostrar o drama de famílias que procuram por seus parentes no "Fluxo". Um trabalho de observação. Que me exigiu paciência, coragem e empatia

Giselle Barbieri, repórter de investigação e pauta

Uma experiência diferente! É um lugar que todo mundo conhece, mas não sabe como é de verdade

Leonardo Medeiros, repórter cinematográfico

Conversar pessoalmente com essas mulheres que lutam diariamente pelo retorno e pela recuperação dos maridos foi impactante. O sofrimento delas, com essa situação da dependência química do parceiro, é ofuscado pela força e pelo amor que elas têm pelos maridos

Renata Garofano, coordenadora de produtos originais

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Arte/R7